sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Em busca da felicidade: Quando mais é menos.

Na maioria dos indicadores de bem-estar a renda tem papel proeminente e, no senso comum, o dinheiro aparece como a panaceia para todos os problemas. Para elucidar a discussão vale resgatar as teorias que de alguma forma deram maior sustentação filosófica a este entendimento e tecer algumas pertinentes perguntas sobre o consumo: Seria a quantidade consumida proporcional ao bem-estar psicológico? Quanto mais rica uma pessoa, mais feliz ela é? Quem ganha um milhão de reais ao ano é 10 vezes mais feliz que outra pessoa que ganha 100 mil?
Ainda que muitas dessas perguntas (e algumas respostas) já tenham sido objeto de reflexão filosófica ao longo do tempo, uma contribuição inicial mais sistematizada e que ganha status de doutrina e movimento político e social é a desenvolvida e consolidada por Jerehmy Bentham (1748-1832). Ele é considerado o principal formulador do utilitarismo clássico e os princípios por ele desenvolvidos subsidiaram acalorados debates e modos de condutas conscientes ou inconscientes da sociedade.

A sua teoria, resumidamente, diz que a ética e a moral estariam subordinadas ao mais importante dos princípios, por ele definido, como o fato de todo o homem procurar o prazer e evitar a dor. Assim, todas as nossas decisões passariam pela tentativa de maximizar o prazer e diminuir a dor. Portanto, não haveria uma moral natural, ou um direito natural, a lei seria apenas uma garantia para que as pessoas possam buscar a utilidade. Mesmo o altruísta se encaixa neste princípio, já que sua dedicação ao próximo e entrega lhe proporcionam prazer, seja pela satisfação do gesto, seja por ser admirado por outras pessoas e assim se sentir melhor (vaidade, fama, reconhecimento, etc..). A definição dele da moral esclarece bem a centralidade de sua ideia:
"A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia de causas e efeitos."
"Os dois senhores de que falamos nos governam em tudo o que fazemos, em tudo o que dizemos, em tudo o que pensamos, sendo que qualquer tentativa que façamos para sacudir este senhorio outra coisa não faz senão demonstrá-lo e confirmá-lo. Através das suas palavras, o homem pode pretender abjurar tal domínio, porém na realidade permanecerá sujeito a ele em todos os momentos da sua vida. "(BENTHAM, 1979, p.3)
Portanto, vê-se que Bentham acreditava num utilitarismo universal, com respostas definitivas, válidas para todos os sujeitos. Observa-se que ele era um adepto da ciência reveladora, mostrando que trazia consigo muito dos valores iluministas. Nesse sentido, propunha uma espécie de “utilitômetro”, a fim de medir a quantidade de bem-estar proporcionada por cada coisa. Ele chegou a considerar o dinheiro como uma unidade de medida deste “utilitômetro”, podendo, assim, comparar e medir a utilidade de cada pessoa. Contudo, já constatava dificuldades neste tipo de medida como, por exemplo, quantificar o valor de uma surra, e assim não chegou a prescrever definitivamente este referencial. De toda forma, a capacidade de medir a utilidade se mostra essencial para o seu sistema e, nesta perspectiva, desenvolverá diversos parâmetros para medir o grau de utilidade das ações humanas. Assim, as pessoas e principalmente o governo deveriam sempre calcular maneiras de maximizar a utilidade da sociedade
Por sua vez, do lado do consumo, o utilitarismo também lida com alguns problemas e críticas, alguns dos quais já eram previstos pelo próprio Bentham. Ele já identificava o princípio de utilidade marginal decrescente. Basicamente, todo ser ao consumir algo, como, por exemplo, um delicioso sorvete, irá ter uma satisfação maior no primeiro objeto de consumo, e em seguida, cada acréscimo de um novo sorvete irá proporcionar um acréscimo de bem-estar proporcionalmente menor. A mesma coisa funcionaria com a renda, em que um acréscimo patrimonial renderia uma quantidade de prazer e bem-estar maior, contudo os acréscimos seguintes (em mesma quantidade) renderiam um prazer menor.
Esta regra era para Bentham um argumento inquestionável para realizar a redistribuição de renda. Pois, um decréscimo do patrimônio do rico representaria uma perda muito pequena de bem-estar para ele, enquanto para o pobre, o acréscimo patrimonial seria um considerável ganho. 
O importante é notar que o princípio da utilidade marginal decrescente, implica que as pessoas com mais renda ou dinheiro continuam com um bem-estar ou prazer maiores que os “debaixo”, contudo, este prazer já não é mais proporcional. Assim, em relação à pergunta formulada anteriormente, a respeito da proporcionalidade de felicidade, vemos que, por este princípio, quem ganha um milhão não é dez vezes mais feliz do que quem ganha 100 mil, a sua felicidade talvez seja apenas um pouco maior.
Contudo, algumas teorias colocam que certos comportamentos associados à riqueza podem levar a uma perda ainda maior de bem-estar. São diversos elementos que podem contribuir para um decréscimo do bem-estar, advindos com o acúmulo material das sociedades contemporâneas. Eles podem ser morais, como propriamente econômicos e psicológicos. 
Por exemplo, já no século XVI, Montaigne abordava algumas dessas questões, afirmando que a abundância se torna tediosa e que todo homem teria um ponto de saciação. Querer ultrapassar este ponto ou não dar tempo de ele se manifestar teria o efeito contrário sobre o prazer, retirando todo o bem-estar que se procurava.
"Julgamos que os meninos de coro têm grande prazer com a música? A saciedade torna-a antes tediosa. Os festins, as danças, as mascaradas, os torneios alegram os que não os veem amiúde e que desejaram vê-los; mas para quem o faz habitualmente seu gosto se torna insípido e desagradável (...). Não há nada tão incômodo, tão enjoativo quanto a abundância. Que apetite não se repugnaria ao ver trezentas mulheres à sua mercê, como as que têm o grande senhor em seu serralho? E que prazer e que espécie de caçada buscara aquele ancestral seu que nunca ia para os campos com menos de sete mil falcoeiros?" (MONTAIGNE, 2002, p.392)
Na sociologia, Durkheim já em 1897 constatava comportamentos que surgiam nas sociedades capitalistas e atingiam principalmente as classes privilegiadas. O tipo de suicídio, por ele definido como anômico, caracteriza um modo de vida sem limites dos ricos e poderosos.
E porque alguém rico se suicidaria? Não tem tudo que precisa? Não pode sonhar com os céus, demandar as melhores coisas que o mundo disponibiliza? Os estudos de Durkheim apontaram que são exatamente estes sentimentos as forças motrizes desse tipo de suicídio. Neste caso, o indivíduo não tem freio para as suas paixões. Está sempre insatisfeito, querendo mais, querendo um novo produto, tendo uma nova demanda a cada dia; e quando obtém o objeto dos seus sonhos percebe que não foi suficiente, seu desejo agora é algo além, a felicidade está em algo que seja absolutamente perfeito. Não existe o satisfatório e, portanto, está sempre insatisfeito:
"Mas então suas próprias exigências tornam impossível satisfazê-las. As ambições superexcitadas vão sempre além dos resultados obtidos, sejam eles quais forem, pois elas não são advertidas de que não devem avançar mais. Nada as contenta, portanto, e toda essa agitação alimenta a si mesma, perpetuamente, sem conseguir saciar-se. "(DURKHEIM, 1999, pg.322). 
E as consequências dessa busca sem fim pelo absoluto, pelo perfeito, acabam desgastando qualquer um, assim como o atleta se cansa na maratona, o rico se cansa na busca interminável por dinheiro e pelo consumo ideal:
"O que lhe permitia não enxergar a si mesmo era o fato de sempre contar com encontrar mais adiante a felicidade que ainda não encontrara até então. Mas eis que foi detido em sua caminhada; não tem mais nada, nem atrás nem à frente, em que repousar o olhar. O cansaço, aliás é suficiente por si só para produzir o desencanto, pois é difícil não sentir, com o tempo, a inutilidade de uma perseguição interminável." (DURKHEIM, 1999, pg. 326) 
Por sua vez, a psicologia e a economia têm também questionado a eficiência do excesso de liberdade de escolha para o bem-estar. O pressuposto da economia clássica é que somos seres racionais e livres. O mercado, por sua vez, ofertaria os bens que a sociedade almeja e neste processo o consumidor manifestaria seu interesse na mercadoria através do preço. Dessa forma, uma maior diversidade de escolhas tenderia a representar maior satisfação ao indivíduo, já que ele pode buscar de maneira mais precisa aquele produto que melhor se encaixa aos seus desejos.
Schwartz (2004) cita e explica uma série de problemas advindos com o gigantesco mercado de bens de consumo e uma diversidade infinita de opções, que colocariam os indivíduos em constantes dilemas, seja para escolher a melhor bolacha, ou até mesmo um plano de telefonia ou previdência. Para ele, o acréscimo de opções nas compras acarreta:
1- Um esforço maior de decisão.
2- Torna os equívocos mais prováveis.
3- Agrava as conseqüências psicológicas de equívocos. 
Dessa forma, Schwartz (2004) considera que muitos americanos, mesmo estando mais ricos, estão mais infelizes. E o principal problema apontado por ele estaria no que ele chama de indivíduos maximizadores. Estes seriam pessoas que sempre buscam a escolha perfeita, e relacionando com a discussão proposta, seriam aquelas pessoas que tentam chegar ao ápice da curva de utilidade marginal, ou no mais elevado grau do citado “utilitômetro”. Estas pessoas acabam por nunca ficarem satisfeitas, já que uma escolha melhor poderia ter sido feita em algum lugar que elas deixaram de visitar. Para cada escolha feita existe uma infinidade de escolhas não feitas. Assim, os maximizadores são mais ansiosos nas decisões, mais propensos a se arrependerem de suas decisões, mais propensos a exagerar no raciocínio contrafactual (ficar pensando em como algo deveria ter sido) e mais propensos à apatia imobilista (não fazer nada por medo de arrependimento). E com tudo isso, como poderiam ser mais felizes?
A própria economia fornece elementos para explicar esta perda de bem-estar advinda do consumismo maximizador. Krugman (1997) explica que não seria racional ser o máximo possível racional, pois ser perfeitamente racional implica em custos (psicológicos, de tempo, de pesquisa) inviáveis para o ser humano. Melhor dizendo, o tempo gasto e o custo emocional envolvido em horas a mais para ficar escolhendo um superinvestimento para suas economias ou a pizza perfeita para o fim de semana são um desgaste muito maior do que o acréscimo mínimo que a escolha supostamente perfeita representaria. Assim, economicamente falando, é irracional ser perfeitamente racional.
Estas idéias podem ser um alento positivo, principalmente para a questão do consumo altamente elevado nas sociedades capitalistas avançadas, onde se poderia lutar para uma revisão dos padrões elevados de bens de consumo, ou talvez, um padrão em favor dos países mais pobres, ou até mesmo de um padrão de consumo mais sustentável, voltado para serviços, para práticas mais ecológicas, para a produção de bens não descartáveis, etc... Contudo, várias características presentes nestas sociedades dificultam ou inviabilizam estas esperanças. 
Shapiro (2006) demonstra que a regra da utilidade marginal decrescente pode levar os ricos a querer muito mais para obter o mesmo nível de satisfação, contrariando as expectativas redistributivistas, uma vez que para o rico garantir um acréscimo ínfimo de bem-estar precisará de muito mais dinheiro. A situação seria similar aos dos viciados em crack, em que cada vez é necessária uma dose maior para manter o “barato”.
Schwartz (2004) considera que o impacto de uma perda é maior do que o de um ganho. A curva da “desutilidade marginal decrescente das perdas” seria mais acentuada no seu início do que a da utilidade marginal. Assim, as pessoas teriam aversão à perda, mesmo que estas perdas sejam pequenas ou insignificantes. Um exemplo desse tipo de comportamento é quando alguém compra um ingresso para um jogo de futebol, mas, às vésperas do jogo, começa a chover e a pessoa se sente incomodada de ir ao jogo. Ainda assim, muita gente acaba indo ao certame, mesmo que o custo do ingresso já seja irrecuperável ficando em casa ou indo. Pois, afinal, na cabeça da maioria ficar em casa é que significa perder o dinheiro do ingresso – e as pessoas detestam perder -, então elas se arrastam para o estádio.
Penna (1999) por sua vez demonstra como a ideologia do conforto está altamente consolidada na sociedade moderna. A busca por este espaço de conforto levaria a um nível de competição similar às características de neurose.
Assim, as pessoas teriam medo de perder, tanto por este fato representar uma perda de bem-estar (em termos utilitaristas), como também por representar uma perda relativa frente à sociedade. Não basta ter muito, é preciso também estar à frente dos seus pares.
"Uma ameaça à estabilidade da sociedade moderna é a gerada pela ambição de ascender na escala hierárquica social- ou simplesmente a ambição de poder-, combinada a uma cobiça material fora de medida, com características neuróticas. Isso gera um perigoso círculo vicioso: mais poder (ou prestígio social), maiores necessidade de poder, da mesma forma que a quantidade de objetos colecionados incrementa a necessidade de se aumentar ainda mais a coleção." (PENNA, 1999, p.39)
E nossas recentes eleições presidenciais parecem confirmar essa inevitabilidade da competição e da neurose. Podemos observar que boa parte dos setores abastados da sociedade, os quais continuam viajando uma ou duas vezes por ano ao exterior, consumindo mais ou menos a mesma cesta de bens, ou seja, sem qualquer alteração relevante no seu montante material, ainda assim entraram num quadro de total paranoia e medo frente às mudanças relativas na estrutura social observadas nos últimos 12 anos. Arrisco a dizer que o motivo do pânico é ver seu filho estudando com o filho da empregada, é a perda na comparação que efetivamente lhes causam sofrimento, o que permite que acreditem com convicção em qualquer formulação estapafúrdia de bolivarianismo ou comunismo batendo às portas. O medo se torna então o seu guia e mobilizador, onde qualquer mudança é violentamente rechaçada. Um quadro lamentável e de difícil reversão.
E o mais triste é saber que tal nível de ódio vai ainda causar muitos danos sociais e no pior dos casos, podem tentar reverter o bem-estar de milhões, para que no final das contas apenas uma minoria tenha um relativo conforto psciológico de não ter que compartilhar aeroportos com pobres. Obviamente, como visto aqui, são confortos passageiros e ilusórios, não constituindo em efetivo bem-estar. Portanto, as ideias destes autores ajudam a elucidar o porquê de as pessoas quererem consumir e acumular cada vez mais. Na verdade, ao não compreenderem essa dinâmica e apostarem no quanto mais melhor, acabam subtraindo pontos do próprio bem-estar, podendo evoluir para quadros de instabilidades emocionais diversas. No final das contas essa lógica é incompatível com o bem-estar e a satisfação, pois o ser se torna prisioneiro de uma busca eterna e frustrante pelo insaciável. Ademais,  essas questões nos dão pistas para entender o porquê das pessoas mudarem tão rapidamente de celulares, carros, TV’s e outros tantos bens. A descartabilidade dos produtos no mundo atual é tanto uma estratégia industrial, mas também uma necessidade psicológica. Mas aí já é tema para outra discussão...
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da Legislação. 2ed. São Paulo: Abril Cultural. Traduções de João Marcos Coelho, Pablo Rubén Mariconda. 1979. Original de 1789.
DURKHEIM, Émile. O suicídio: Estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes. Tradução Mônica Stahel. 2000. Original de 1897.
MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios: livro I. 2ed. São Paulo: Martins Fontes. Tradução Rosemary Costhek Abílio. 2002. Título original: Les essais. Edição conforme com o texto do exemplar de Bordeaux com os acréscimos da edição póstuma, explicação dos termos arcaicos, tradução das citações, um estudo sobre Montaigne -/ por Pierre Villey sob direção e com prefácio de V.l Saulnier.
PENNA, Carlos Gabaglia. O estado do planeta: Sociedade de consumo e degradação ambiental. Rio de Janeiro, 1999. 251p.
SCHWARTZ, Barry. O paradoxo da escolha: porque mais é menos. São Paulo, 2004. 301p.
SHAPIRO, Ian. Os fundamentos morais da política. São Paulo, 2006. 327p.


domingo, 21 de dezembro de 2014

Matar bandido é mais eficiente?

Este texto foi inicialmente publicado no site do Luis Nassif em Maio de 2014. (http://jornalggn.com.br/noticia/matar-bandido-e-mais-eficiente-por-cristiano-pacheco)

A mim me parece que os defensores dos Direitos Humanos costumam levar desvantagem no debate a respeito dos crimes de grande impacto, porque o discurso quase sempre se centra na importância de assegurar a dignidade da pessoa humana, questões morais, de direitos universais, etc, etc, etc... Sem dúvida que são bandeiras legítimas, civilizatórias e que constituem um “cimento” mais consistente para conseguir um efetivo convívio social e uma sociedade mais pacífica.
Contudo, os contrários aos direitos humanos identificam esse discurso como uma forma de proteger bandidos e consequentemente aumentar a criminalidade. A percepção é que a segurança pública vai mal e que se for“suavizar” para o bandido a coisa irá piorar ainda mais.
Assim, de um lado temos um discurso de cunho moral que supostamente poderia até aumentar os crimes ao aliviar a vida dos criminosos; e de outro lado, um suposto discurso de cunho prático, que poderia coibir o crime através do clássico sistema de dissuasão pela força bruta e com requintes de crueldade para aterrorizar os infratores. No imaginário social e em meio à violência e o medo, é natural que o segundo discurso sempre ganhe de goleada...
Thomas Hobbes demonstra bem essa tendência comportamental dos humanos e seus correspondentes dilemas. Em linhas gerais a teoria hobbesiana coloca cada homem como lobo do homem, mas não porque sejam todos maus e sim porque não existem mecanismos efetivos de garantir uma convivência pacífica entre esses homens. Cada palavra jurada, cada compromisso firmado pode ser um embuste ou quebrado no dia seguinte em prejuízo do lado mais ingênuo! Vejo essa teoria como precursora da hoje muito citada teoria dos jogos e o famoso dilema do prisioneiro, onde o ator racional invariavelmente adota posturas não colaborativas por esta ser mais vantajosa em qualquer situação.
“(...)do medo recíproco entre os homens resulta, ao contrário, uma disposição para a desobediência e a desordem civil (…) do medo que eu não sei se o outro vai me causar na medida em que tenha o poder para tanto e contra o uso do qual não tenho nenhuma garantia, a não ser meu próprio poder. É desse medo que nasce a inclinação para a aquisição de poder e mais poder que, gerando no outro a mesma disposição, culmina na guerra. (LIMONGI, 2007).”i

Como a coisa que cada ser humano mais valoriza é a própria vida e ele precisa de recursos para sobreviver, existe um encadeamento lógico para suas ações.
1) Primeiro deve atacar quando puder garantir domínio sobre recursos que lhes são necessários.
2) Mesmo que já tenha recursos, sabendo que outros humanos deles precisam para viver, deve se defender de possíveis ataques, atacando primeiro.
3) Deve mostrar ser factível sua capacidade de reação e ataque para dissuadir novas ameaças.
“Se você tem razão para desconfiar que seu vizinho é propenso a eliminá-lo, por exemplo, matando-o, então você será propenso a se proteger elimiando-o primeiro, em um ataque preventivo. Você pode ser tentado a isso mesmo que normalmente não seja capaz de matar uma mosca, contanto que não esteja disposto a cruzar os braços e se deixar matar. A tragédia é que seu competidor tem todas as razões para fazer o mesmo cálculo, mesmo que ele seja incapaz de matar uma mosca.” (PINKER, 2013)ii
Só que Hobbes é muito preciso ao mostrar que tal estado de natureza leva a uma vida insuportável, pois a guerra é permanente, os ataques iminentes, todos são suspeitos e não existe confiança possível (alguma semelhança com o que se propaga nos dias de hoje?). O resumo da Ópera é que ele advoga que só um medo maior (o Leviatã ou o Estado) poderia impor uma ordem onde todos iriam respeitar.
Pois bem, essa fundamentação teórica (que não é única, nem definitiva), junto com dados históricos e estudos na área de segurança pública, permitem levantar a hipótese que a defesa dos Direitos Humanos pode ser também MAIS EFICIENTE do que a o bordão “Bandido bom é bandido morto”. Ou então, no mínimo, dizer que não é possível inferir que a dissuasão via penas extrema, como tortura e pena de morte, sejam comprovadamente mais eficazes que medidas punitivas instituídas por um Estado de Direito e limitadas por pressupostos dos direitos humanos. A verdade é que a discussão sobre criminalidade é polêmica, recheada de contradições, de dados referendando argumentos diferentes e causalidades múltiplas que dificultam pareceres definitivos.
No livro Guerra e Paz de Tolstoi, narra-se uma situação que nem sempre é recomendado gastar toda sua energia para exterminar o seu inimigo, pois além de desgastar suas tropas e perder vidas inutilmente, você pode estar dando elementos para que o inimigo se una e movido pelo instinto de sobrevivência cause mais danos do que se fosse apenas contido, e no caso do livro, empurrado para fora das fronteiras. A questão é bem intuitiva e é bem relatada no livro Elite da Tropa de Pimentel e Luis Eduardo Soares. Os autores relatam que quando a polícia carioca tentou aumentar seu poder de dissuasão (na verdade os motivos nem sempre eram tão nobres assim) matando bandidos rendidos, os bandidos aprenderam que não havia possibilidade de rendição. Assim, isso supostamente dissuadiria pessoas de entrar na criminalidade, o que é difícil de averiguar, mas pelo que vivemos, é possível especular que não foi efetivo. Se pegarmos a expectativa de vida de um sujeito do crime organizado, é bem possível que seja menor do que o cara da favela que não se envolve, pois o criminoso sofre tanto com a violência da polícia, como entre outras facções. Dessa forma, sob o ponto de vista exclusivo da auto-preservação, qual seria o benefício de entrar na criminalidade? (Me lembro de um documentário em que os meninos diziam preferir morrer cedo, mas viverem como reis , do que serem um “Mané” pela vida inteira...)
Por outro lado, os que ficaram na criminalidade ou entraram depois já sabiam que não existiria rendição, valendo a pena aumentar a aposta na violência e fazer de tudo para não ser pego. E de fato o poder de dano dos grupos organizados deu um salto de qualidade, não poupando alvos que antigamente eram evitados, como os próprios policiais e bombeiros.
Esse tipo de lógica é tão perturbadora, que a pessoa não precisa nem mesmo ser criminosa para se valer da violência. Se alguma pessoa inocente estiver sob suspeita de um crime e sabendo ela que não vai haver julgamento, pois a polícia irá matá-la (afinal bandido bom é bandido morto e a Justiça só alivia para a bandidagem), será legítimo (já que pelo pressuposto hobbesiano, a própria vida é o que importa) que ela procure se salvar, se ocultar, matar para se defender, ou mesmo procurar proteção no crime organizado...
Na verdade, se não houver garantias (e aqui entra o perigo de uma sociedade armada e querendo se defender a todo custo), até mesmo um pequeno acidente de trânsito ou discussão no bar podem levar à morte. Pois quem pode garantir que o cara em que eu bati o carro não é um criminoso, não está estourado e vai me matar? O mais seguro é eu atirar primeiro até porque ele deve estar pensando o mesmo. Qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência, basta olhar as estatísticas de mortes por motivos “fúteis” para entender melhor o que se passa.
Do lado dos supostos homens de bem (ou seria bens e benz?) a lógica da sobrevivência também traz perigosos e inevitáveis desdobramentos. No mesmo livro Elite da Tropa, os autores narram uma situação em que dois policiais foram apagar um traficante, mas infelizmente foram vistos por uma testemunha. Ora, essa testemunha (que não era suspeita de qualquer crime) passava agora a representar uma ameaça, pois poderia denunciar esses “valorosos” justiceiros, com todas as consequências, como perder o emprego ou até ser preso (junto de outros bandidos que eles mesmos já teriam mandado prender ou matar). Assim, nada mais lógico do que também apagar a testemunha...
Só que a história não acaba aí. Via de regra, esses grupos de justiceiros não se sustentam sozinhos. Para apagar bandidos, deve haver ocultação de cadáveres, falsificação das perícias, armas frias, intimidações, troca de favores são feitas, coações e exigências que não estão sob nenhuma supervisão legal (e da própria sociedade). E com tantos atores envolvidos quem garante que esses agentes estão sempre buscando serviços “nobres” como combater a criminalidade e não o contrário? As milícias são um bom exemplo desse desdobramento, quando policiais viram criminosos...
Confesso que ainda me surpreendo como as pessoas são extremamente severas e pessimistas com políticos e as instituições (com contribuição negativa de nossa mídia partidarizada e oposicionista), mas se alegram e põem a mão no fogo por qualquer policial ou justiceiro que elas nunca viram, mas que tenham matado alguém que elas supõem ser um perigoso criminoso. Não poderia ser o contrário? Um policial bandido matando um inocente que ia denunciar seus crimes? No caso dos anjinhos justiceiros do Rio de Janeiro afagados pela Sheherazade, levantou-se a suspeita de que pelo menos dois deles seriam suspeitos de diversos crimes, inclusive estupro. Recentemente, tivemos o deplorável caso de linchamento de uma mulher inocente, por falsos boatos espalhados na internet. Infelizmente não foi o primeiro caso nem será o último...
Se chegarmos à conclusão de que matar bandido tenha efetivo poder dissuasório e isso for instituído na legislação, cabe também indagar se vale a pena arriscar tal abordagem, sabendo-se da inevitabilidade de morrem inocentes e a impossibilidade de corrigir esse tipo de erro. Quando condenado à prisão, sempre existe a possibilidade de reverter uma condenação errada, na pena de morte não...Nos EUA, sabe-se hoje que são vários os casos de inocentes que foram condenados a pena de morte.
Não sou especialista no tema de segurança pública, mas já li algumas coisas a respeito. Dessa forma, me arrisco a dizer que é hora de abordar a temática dos direitos humanos também sob a ótica de sua eficiência para coibir ou diminuir a criminalidade. Pelos argumentos apresentados, suspeito que a dor e humilhação não reabilitam ninguém, e muito menos possuem poder dissuasório. Cabe, portanto, debruçar-se com mais seriedade e menos paixão sobre este tema tão espinhoso, verificando os prós e contras de cada abordagem e sem desmerecer a priori qualquer alternativa. Tudo que uma boa ciência recomenda!!

i - LIMONGI, Maria Isabel. A racionalização do medo na política. In: NOVAES, Adauto. Ensaios sobre o medo.
ii - PINKER, Steven. Os anjos bons da nossa natureza. 2013