segunda-feira, 16 de março de 2015

Desvendando o discurso anti-corrupção - I (Dilema Hobbesiano)

Sempre meditei sobre os motivos que levam as pessoas a se sentirem atraídas por discursos/plataformas exclusivamente anti-corrupção. Alguns chegam ao nível da histeria, sentem-se verdadeiramente perturbados, ameaçados, envoltos num “mar de lama”. O suposto mundo imoral estaria ameaçando o seu mundo virtuoso e moral...




Nos últimos tempos, percebo que tal “bandeira” ganhou espaço em quantidade e intensidade. Parece que contra o PT, a “bandeira” anti-corrupção, contra mensalão, petrolão, etc... passou a ser a plataforma principal a unir mídia, políticos de oposição, classe média enraivecida e mesmo alguns setores mais pobres. O último ato do dia 15 mostrou a força do discurso e a capacidade de ser a liga firme para possíveis frustrações de outra ordem.

Mas enfim, o que torna tão atrativo esse tipo de discurso? O que o faz tão persistente ao longo dos anos e com considerável influência no ânimo das pessoas, nas suas emoções e intenções? Nos meus tempos de movimento estudantil escutava dentro da esquerda que aquilo era uma forma de despolitizar o debate, de flertar com o moralismo para “esconder” as estruturas de exploração. Nunca gostei muito de tal explicação, me parece insuficiente ainda que tenha alguma fundamentação. 

Na verdade, em geral é fácil perceber certa seletividade nas indignações vistas por aí, o que nos levaria a concluir que as pessoas são hipócritas e falsas. Mas com o tempo fui percebendo que um número considerável de pessoas não percebem essa seletividade, elas o fazem de maneira “honesta”. Indo mais além, fui percebendo que certas formas de pensar e construir julgamentos são quase que universais sejam à direita ou à esquerda, e estão todos sujeitos a erros bem corriqueiros. 

Assim, pretendo usar este espaço para desenvolver algumas ideias que tenho a respeito do tema. Nunca é demais ressaltar que é um texto teórico, tentando desvendar justificativas subjetivas e condicionantes sociais que propiciam a prática da corrupção ao mesmo tempo em que todos dizem rechaçá-la. 

Dilema Hobbesiano:

O dilema hobbesiano que desenvolvi aqui também ajuda a entender alguns desses mecanismos. Meu palpite é que as pessoas não o aplicam com inteira consciência, mas sim com certa intuição do seu funcionamento e nos momentos em que favoreça a si. 

Recuperando um trecho do Steven Pinker: 

“Se você tem razão para desconfiar que seu vizinho é propenso a eliminá-lo, por exemplo, matando-o, então você será propenso a se proteger eliminando-o primeiro, em um ataque preventivo. Você pode ser tentado a isso mesmo que normalmente não seja capaz de matar uma mosca, contanto que não esteja disposto a cruzar os braços e se deixar matar. A tragédia é que seu competidor tem todas as razões para fazer o mesmo cálculo, mesmo que ele seja incapaz de matar uma mosca.” (PINKER, 2013)

Enfim, o dilema diz de forma crua que se estamos todos em guerra uns contra os outros, qual o sentido de ser um homem honesto e virtuoso a seguir todos os maiores preceitos morais? Com certeza, o cidadão virtuoso será o primeiro a ser morto, ou na melhor das hipóteses, viverá uma vida miserável sustentado os desonestos, ladrões, assassinos, etc... Isso para um kantiano não tem nenhum problema, pois sua ética deontológica e seu imperativo categórico determinam a agir conforme preceitos morais universais, independente de haver alguma reciprocidade ou instituições que limitem certos comportamentos. 

Max Weber chamava esse tipo de escolha de ética da convicção, mas que em determinadas situações pode trazer consequências éticas também indesejáveis, como deixar uma mãe em um parto de risco morrer por não aceitar o aborto em hipótese alguma ou não mentir mesmo em situações de risco. Weber, portanto, reconhece que o ser humano em muitas situações lida com escolhas trágicas, seja por uma convicção colidir com uma consequência indesejada, seja pelos termos das escolhas serem igualmente trágicos.

Em certos termos, acredito que o ser humano dificilmente se dispõe a abraçar imperativos que o prejudiquem de maneira tão radical como dar cabo da própria vida ou abraçar a miséria absoluta. A ética da responsabilidade proposta por Weber reconhece os dilemas existentes, o possível desrespeito a convicções em determinadas situações e prima por essa ideia de responsabilidade do sujeito, de saber reconhecer as próprias escolhas e de que elas podem ser trágicas.

Um exemplo muito citado de escolha trágica é aquele em que o pai está com dois de seus filhos escondendo de soldados nazistas. Um dos filhos é recém nascido e começa a chorar, podendo acusar o local em que os três se escondem. Nessa situação, vale dar cabo da vida de um filho para salvar a si e o outro? Recentemente e em episódio da vida real, dizem que no tsunami da Indonésia, uma mãe teve que escolher qual de dois filhos ela salvava...Existem vários exemplos desse tipo.

Enfim, são situações extremas, às vezes bem retratadas em filmes e seriados. Na quarta temporada da série Walking Dead, uma moça (Carol) resolve matar dois companheiros do grupo para que uma doença não se espalhasse, a maioria ficou horrorizada, mas depois um dos mais indignados a perdoou... Mais chocante ainda é quando ela mata uma criança que ela mesma jurou proteger, devido ao fato de que a criança estava surtada, ameaçando a segurança do grupo por acreditar que zumbis eram iguais aos seres humanos. Enfim, no seriado aparecem interessantes retratos de situações hobbesianas, dilemas diversos, onde prevalece a guerra de todos contra todos, cada grupo querendo sobreviver, devendo atacar primeiro para garantir suprimentos e por ai vai.

Na literatura, não é outra a ideia transmitida pelo delicioso personagem Quincas Borba de Machado de Assis:

“— Não há morte. O encontro de duas expansões, ou a expansão de duas formas, pode determinar a supressão de uma delas, mas rigorosamente, não há morte, há vida, porque a supressão de uma é princípio universal e comum. Daí o caráter conservador e benéfico da guerra. Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas chegam apenas para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e irá à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”  (Quincas Borba, capítulo VI)

Assim em ambiente Hobbesianos é razoável imaginar que a guerra irá prosperar e desejos antes contidos irão aflorar...

Pois bem, acontece que no ambiente hobbesiano, todos são ao mesmo tempo cidadãos cheios de moral quando se autoavaliam, mas também ladrões, assassinos, vagabundos quando são os outros quem te olham... Você provavelmente terá um alto conceito moral de si mesmo, mas sabendo que está sob ameaça intensa, flexibilizará suas regras morais para sobreviver no ambiente hostil. Em qualquer guerra, aberta ou velada, percebe-se maior propensão para o ser humano liberar sua besta fera. 

E então chegamos finalmente ao tema da corrupção. Qual a diferença de ser assaltado por bandidos do PCC ou por bandidos bem vestidos? Aliás, quando o tráfico ou milícias estão mais bem organizadas, o roubo acontece de maneira menos violenta ou mais velada, tipo retaliando quem não paga o Vale Gás ou não compra a "proteção". A dinâmica de cobrança muitas vezes se parece com a tributação.

E se você considera que é assaltado por políticos vagabundos, desonestos, essa "corja" que suga tudo, e por ai vai... Qual o sentido de ser um homem virtuoso e moral para sustentar essa corja? Qual o sentido de pagar impostos e arcar com o sustento do Estado? 

Ao final, chega quase a ser uma obrigação moral se defender sonegando impostos, comprando recibos médicos, molhando a mão do policial, ou até mesmo desviando um recurso público. Afinal, em qualquer desses casos, se você não o fizer, esse dinheiro estará indo para um político Super-Hiper -Mega corrupto, enquanto você provavelmente considera que seus fins são mais legítimos, importantes, e, provavelmente, mais morais. Pergunta-se: Quem devolveria uma carteira cheia de dinheiro que encontrasse perdida e seu dono fosse o Paulo Maluf? 

A grande questão é que todos podem estar (e provavelmente estão) pensando exatamente como você. Até o maior dos vilões da atualidade, o político, teria seus motivos "legítimos" e racionais para se defender desviando um dinheiro, evitando que ele vá parar na mão de alguém ainda mais corrupto ou de um adversário com poder de aniquilá-lo. No campo econômico, monopólios, oligopólios e cartéis serão o caminho natural. Corporativismos de todo o tipo se formarão nas administrações públicas e nas classes profissionais (triste lembrança da resistência histérica dos de jalecos branco contra o Mais Médicos). Ao final, o burocrata também terá suas razões para desviar ou privilegiar a si e os seus e o mesmo pensarão os empresários. Não é a toa que estimaram a perda com sonegação no Brasil em R$ 500 bilhões, enquanto os corruptos desviariam 70 bilhões... Mas quem nunca ouviu que é legítimo sonegar porque o Estado é corrupto e/ou não oferece contrapartidas?

Assim sendo, os discursos contra a corrupção parecem que crescem em intensidade na mesma medida em que quem os professa se sente desculpado para cometer certos atos também corruptos. A corrupção verdadeiramente grave é sempre praticada pelos outros, enquanto cada um se perdoa. Todos juram serem seguidores da boa moral e dizem apenas que estão se defendendo. 

Por fim, em um quadro degradante é possível que os mais razoáveis percebam o engodo dos discursos moralistas e passem a atuar com mais "desfaçatez" ou "sensatez" a depender da ótica. A verdade é que o dilema hobbesiano nos deixa um mundo de guerra total, onde alguns conseguem ver essa realidade crua e atuam conforme suas regras (aos vencedores as batatas), enquanto outros agem brutalmente, mas glorificam e fazem loas à moralidade. (A propósito, seres imorais ou que pregam serem donos da moralidade tendem a ser dois extremos perigosos!)

Solução?!? Hobbes sugeriu o Leviatã, um poder acima de todos os outros a garantir a paz. Daí em diante, mais alguns milhares de laudas desenvolveram na Ciência Política ideias e práticas como formação de consensos, democracia, estado de bem estar social, políticas públicas, etc... os quais se não trouxeram a solução, pelo menos apresentaram um ambiente mais promissor do que o da Idade Média.

Já no âmbito individual, acredito que o caminho da realização humana só é possível com a superação desse dilema, pois mesmo os vencedores terão que arcar com desgastes psicológicos das guerras, com adrenalina alta, nervosismo, ódio, ansiedades e transtornos diversos, além de consequências não previstas, etc... Enfim, todo um caldo de sentimentos que embrutecem e desqualificam a vida, tornando impossível a felicidade.

Por fim, nos dias atuais, acredito que boa parte da sociedade não viva o dilema hobbesiano, muito pelo contrário. Existem países em guerras ou mesmo setores sociais sob extrema vulnerabilidade, mas não considero nem de perto que o dilema se imponha na sua forma crua e absoluta.* (Aliás, mesmo em momentos extremos o ser humano apresenta comportamentos surpreendentes e o altruísmo também compõe as emoções humanas, não existindo essa suposta ordem natural egoísta.)



*Na verdade, inicialmente a impressão que se tem é que o dilema subsistiria primeiramente entre os mais pobres, devido à condição de vulnerabilidade. Mas a recente onda de histeria entre setores da classe média brasileira, talvez demonstre que tais sentimentos podem aflorar não por ameaças objetivas, mas também por ameaças imaginárias ou perdas de privilégios banais, como ter que compartilhar aeroportos e universidades públicas com a gente "diferenciada". Mais para frente tentarei abordar esse medo.


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