segunda-feira, 25 de maio de 2015

Desvendando o discurso anti-corrupção II (indignação seletiva)

Certa vez, viajando a trabalho com um colega, o nobre companheiro de estrada comia quitutes diversos e jogava sem qualquer cerimônia papéis e embalagens pela janela. Tipo de conduta que me incomoda, mas que também só resta a resignação, pois não me proponho a ficar corrigindo homens adultos, ainda mais uma companhia de trabalho. Pois bem, e não é que mais alguns quilômetros de asfalto à frente, nos deparamos com restos de alguma carga de construção civil jogada ao lado da estrada e o nobre colega exclama:

-“Que isso!?! Que absurdo! Quem jogou essa porcaria na beira da estrada? Vagabundos! Tinha que prender. Quanta falta de educação. Cadê as instituições?! Brasil não é um país sério...

Mesmo já calejado com as frequentes incoerências dos que se acham "indignados" com comportamentos morais dos outros, confesso que pelo curto espaço de tempo entre uma coisa e outra, fiquei um pouco surpreso e com vontade de rir. 

Nas  manifestações do dia 15 de março, tivemos outras condutas “interessantes” a ilustrar minhas observações:








Bons exemplos de cara de pau, não? Mas também podemos chamar de indignação seletiva, dupla moral ou hipocrisia. Mas convenhamos que a grande maioria que lá estava não se envolveu em casos de corrupção tão descarados, seria desonestidade e maniqueísmo de minha parte.

No dia a dia, o mais comum é encontrarmos uma parcela maior de ditos "cidadãos de bem" (ou bens), que em luta contra um "Estado Tirano", eventualmente façam uso de procedimentos como compra de recibos médicos, molhar a mão do guarda ou falsificar uma carteirinha de estudantes para evitar os "abusos" do Estado, ou das redes de cinema e casas de show. Mas fora isso e a desculpa já bem relatada de legítima defesa contra o "Estado que tudo suga", todos sempre juram serem os melhores seguidores da boa moral e não se envolvem em casos tão abusivos como os acima. Se a questão de escala difere um do outro, aí já é um papo para outro dia.

Mas acredito que a artimanha da indignação seletiva não é só uma questão de fechar os olhos para os próprios mal feitos e apontar o dedo para os erros dos outros. Na verdade, mesmo um cidadão que tenha a "ficha limpa", ou seja, que não tenha aprontado uma "corrupçãozinha" aqui ou acolá, para escapar dessa "fúria arrecadatória" desses "políticos canalhas", ainda assim, é provável que faça uso da dupla moral no seu dia a dia, pois os seres humanos não são deuses.

Como é impossível abarcar toda a realidade, seja do ponto de vista cognitivo, seja do ponto de vista moral ou sentimental, é natural que todo ser humano selecione/recorte seus objetos de conhecimento/moral/afeto, com boa dose de conveniência/arbitrariedade, ou mesmo má fé...

Assim, é bem improvável que as pessoas se indignem com a mesma intensidade em relação a abusos cometidos na Índia frente aos da sua cidade, o mesmo em relação a seus familiares frente a vizinhos. Na suposta "luta por justiça", no fundo as pessoas tendem a proteger "os seus" e ignorar os "mais distantes". Isso envolve psicologia, sociologia, antropologia e sei lá quantas outras ciências mais.

Estes dias estava relendo um livro de Adam Smith sobre os sentimentos morais e me deparei com a seguinte passagem:

"Suponhamos que o grande império da China, com suas miríades de habitantes, fosse subitamente engolido por um terremoto, e imaginemos como um humanitário da Europa, sem qualquer ligação com aquela parte do mundo, seria afetado ao receber a notícia dessa terrível calamidade. Imagino que, antes de tudo, expressaria intensamente sua tristeza pela desgraça de todos esses infelizes, faria muitas reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana e a vacuidade de todos os labores humanos, que num instante puderam ser aniquilados. (...) E quando toda essa bela filosofia tivesse acabado, quando todos esses sentimentos humanos tivessem encontrado sua expressão definitiva, continuaria seus negócios ou seu prazer, teria seu repouso ou sua diversão, com o mesmo relaxamento e tranquilidade que teria se tal acidente não tivesse ocorrido. O mais frívolo desastre que se abatesse sobre ele causaria uma perturbação mais real. Se perdesse o dedo mínimo de manhã, não dormiria de noite, mas desde que nunca os visse, roncaria na mais profunda serenidade ante a ruína de centenas de milhares de seus irmãos. E a destruição dessa imensa multidão parece claramente apenas um objetos menos interessante do que seu reles infortúnio particular." (pg. 105, Teoria dos Sentimentos Morais)

Gostei muito desse trecho pela universalidade da ideia e por conter descrições similares a desgraças relativamente recentes. Quantas catástrofes gigantescas tivemos nos últimos anos? Aquele tsunami na Indonésia matou na casa dos centenas de milhares... E por quanto tempo as pessoas se sensibilizaram com o episódio? O que realmente trouxe de perturbação para o seu dia a dia? Enfim, acredito que não esteja muito distante do descrito por Adam Smith. O mais próximo sempre afeta mais as pessoas, ainda mais se for na própria carne.

Mas o episódio acima também retrata um tipo frequente de dupla moral. Ainda que as pessoas não se sintam afetadas no mesmo grau com infortúnios dos "outros" quando comparados ao próprios, a verdade é que a própria sensibilização dos infortúnios dos outros costuma vir acompanhada de enormes doses de seletividades.

Assim, os milhares de atentados no Iraque, na África passam como um raio, enquanto um atentado ao jornal Charlie Herbou traz um frenesi de indignação. A morte violenta de um menino da periferia não gera comoção, não aparece seu nome e fica por isso mesmo, enquanto uma morte de alguém em melhores condições vêm acompanhada de marchas pela paz e luto. Cai um avião e ficam todos traumatizados, enquanto um caminhão com retirantes que vira na pista é nota de rodapé. Quando morrem centenas em náufragos tentando chegar à Europa, não gera a mesma comoção, nem repúdio do que um naufrágio de um navio italiano (na verdade, com a ideia de imigração roubar empregos na Europa, alguns passam a ver o episódio com relativa simpatia).

No quesito imigração, o cenário tende a piorar. A Líbia era o país da África com melhor IDH, criou-se o sentimento "humanitário" de derrubar um tirano e implantar a "democracia", mas transformaram o país em grupos de gangues, uma verdadeira catástrofe social. Já o petróleo está garantido, enquanto milhares passam a tentar a sorte na Europa. E como os governos não querem receber aqueles que fogem do que eles mesmo criaram, inventa-se novos demônios para justificar as medidas repressivas. A culpa agora são dos traficantes, dos piratas...

Enfim, os exemplos são infinitos...O pior é que a mídia ampliou e muito essa hipocrisia seletiva... 

E no final das contas é exatamente esse expediente que se usa na maioria das conversas sobre política e corrupção.

Nessas conversas diárias de trabalho, lazer, no cabeleireiro, ou táxi estou cansado de todo dia ouvir as mesmas pessoas se "indignarem" sempre das mesmas pessoas/partidos com quem ela não simpatiza. Tem sempre mil razões para pintar um José Dirceu da vida como o gênio do mal, o Lúcifer do Século XXI, ainda que as bases para tais convicções seja, quase sempre, uma vontade de acreditar no que leu em alguma revista semanal, do que propriamente uma certeza sobre os fatos que relata. E se o caso imoral de corrupção for de um político com quem a pessoa simpatiza ou votou, vale o benefício da dúvida, a necessidade de provas "robustas", o direito à defesa. No limite, irá considerar que aquilo é cortina de fumaça da cambada sociopata que ele odeia... E Se o Judiciário condenar estes, só aplausos, Joaquim Barbosa vira um justiceiro! Se absolve seus adversários, foi comprado, deturpado, enviesado... Por último, se os condenados forem os "seus", inverte-se tudo, a Justiça vira "aparelhada" pelo partido no poder, o Estado Policial que Gilmar Mendes e Demóstenes Torres denunciaram quando predeu-se Daniel Dantas ou Eliane Tranchesi... 

Lava-Jato?! Tem petistas? aplausos e odes aos que zelam pela Justiça... Zelotes e HSBC?! Não tem petistas? Só endinheirado? Assovia e finge que não viu... Um helicóptero de um senador foi pego com cocaína? É apadrinhado de um político em quem votei? Nada de bater panela...E se não der para esconder, diz-se que foi traído.

Enfim, é claro que petistas ou qualquer um também possa usar do mesmo procedimento. Talvez, a diferença esteja no grau em que cada um exagere desses procedimentos ou mesmo na honestidade em que cada um acredita no que fala. Ou então, na importância que se dá a uma discussão meio que sem saída. Desde Maquiavel que já se demonstra que na política não existe essa moral de anjos que alguns juram defender... (e obviamente não aplicam para si próprios). Quase sempre se propor a uma moral de anjos, traz a própria ruína ou faz-se a política dos inimigos. Não que não existam limites, cada qual irá impor os próprios... Mas é muita hipocrisia ou ingenuidade achar que certos procedimentos sejam atributo de um partido específico e não do sistema.

Aliás, acredito que muitos, de tantos se embebedarem das próprias falácias que pregam, acabam por acreditar nelas. Talvez, seja a necessidade de um ambiente maniqueísta, como um mecanismo de auto-engano, até uma auto-defesa contra os próprios demônios... 

Tentarei escrever mais a respeito no próximo post....









quinta-feira, 14 de maio de 2015

O papel dos juros - Dilemas advindos com o Plano Real III

Os juros cumprem diversos papéis na economia do país. O mais comum é quando nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copon), justificam-se aumentos nas taxas de juros a fim de conter uma suposta inflação de demanda. Por essa via, aumentam-se os juros, com a intenção de conter o excesso de demanda e de também interferir nas expectativas inflacionárias dos ditos agentes econômicos.

Esse é o viés anti-inflacionário dos juros, mas como foi dito em outra postagem, os juros afetam toda uma série de outras variáveis. Assim, pode acontecer que uma vez que o país entre em uma espiral de altos déficits em transações correntes, este déficit só consiga ser “coberto” pelo afluxo de capitais através de investimentos e empréstimos. E para que o capital externo se sinta “atraído” a investir no país é natural que queira retornos satisfatórios e seguros, assim como é natural que faça lobbies e pressões para que a taxa de juros seja elevada. Por isso nada mais atrativo do que uma “boa e alta taxa” de juros para garantir esse afluxo de capital. 

E assim foi o desenvolvimento da taxa Selic mensal ao longo dos últimos 20 anos:



Em resumo, percebemos que a taxa de juros cai de 1996 a 1998, sofrendo um grande repique no finalzinho de 1998, voltando a cair só no início do ano 2000. A partir das eleições de 2002 ela volta a subir suavemente, política de aumento que é mantida mesmo após a eleição de Lula. O primeiro governo Lula caracterizou-se pela continuidades de vários aspectos da política econômica de cunho ortodoxo, aumentando a taxa de juros por diversas vezes, a fim de tentar ganhar credibilidade e demonstrar que seu governo não apresentava perigo ao capital internacional.  

Em seguida, a partir de 2004, a taxa Selic volta a cair suavemente, alternando períodos de  pequenos aumentos, mas que ao final, permanece em patamares menores que de períodos anteriores. O recorde dessa queda ocorre em janeiro de 2013, quando atinge uma meta anual de 7,11% (ao ano) . Desde então, ela volta a subir quase que ininterruptamente, alcançando 13,25% em abril de 2015. As últimas previsões são que continue subindo, podendo este cenário se estender até o final de 2016. O Bacen vem afirmando que pretende usar desse remédio até o momento em que a inflação se estabilize na meta de 4,5%.

Apesar dos pesares dos constantes aumento, observa-se que o país conseguiu sair de taxas de juros estratosféricas para um ambiente um pouco mais baixo, mas que ainda assim mantém o país entre as mais altas taxas de juros do mundo. É possível dizer que o primeiro governo da presidenta Dilma tentou baixar essas taxas para padrões mais condizentes com o tamanho da economia brasileira, mas percebe-se que a partir de 2013, pode ter havido uma mudança de rota ou um recuo da estratégia.

Atribuí-se que os novos aumentos ocorreram por pressões inflacionárias. No caso, por exemplo, do crescimento dos preços do tomate em 2013, a mídia relacionou o fenômeno a descontroles da política governamental, exigindo implicitamente aumento de juros. Na ocasião, chegaram até mesmo a colocar a apresentadora Ana Maria Braga com um patético colar de tomates, sugerindo que o alimento havia se tornado uma jóia. 

O problema de algumas dessas explicações é que relacionam tipos de inflação distintos com a dita inflação de demanda, onde o único remédio são os aumentos de juros. Acontece que a inflação é um fenômeno multicausal, podendo ocorrer por problemas na oferta, ambiente oligopolista, excesso de preços indexados, dentre outros tantos fatores. 

No caso, por exemplo do aumento de preço de produtos naturais é mais comum que ocorram por choques na oferta, quando eventos da natureza no Brasil ou no mundo (chuvas excessivas, seca, furacões,  etc...) prejudicam a produção. Nesse sentido, a prescrição de aumento de juros não terá efeito nenhum sobre a inflação e alguns economistas dizem que isso já aconteceu em “n” situações.

É claro que a discussão é mais complicada e envolve diversos outros fatores que o Bacen jura levar em conta cercado da melhor técnica possível. Infelizmente, a equação para calcular uma "boa" taxa de juros não é das mais simples, assim como não se resume a cálculos neutros. Nunca é demais lembrar que fortes agentes financeiros são os que mais ganham com estes aumentos, o que implica considerar a presença de um lobbie poderoso para ampliar os ganhos de setores rentistas. Nesse sentido, não existem argumentos puramente técnicos, existe um jogo de poder a permear as decisões tomadas.

domingo, 10 de maio de 2015

Tripé Econômico - Dilemas advindos com o Plano Real II

A partir de uma conjuntura de transações correntes altamente deficitárias e baixas reservas internacionais é que surgiu uma política até hoje vigente, o chamado Tripé Econômico.

Como foi visto, a âncora cambial foi a principal ferramenta de controle da inflação no primeiro mandato de FHC. Contudo, ela trouxe um desequilíbrio externo crescente e uma séria crise fiscal. A sobrevalorização do real percorreu todo o primeiro mandato de FHC. Conforme Giambiagi (2011), partindo de um nível 100 em junho de 1994, a moeda tinha diminuído para 68 no auge da apreciação em julho de 1996 e mesmo com algumas microdesvalorizações, o referido índice ainda era de apenas 79 ao final de 1998.


Para que o país se sustentasse, era preciso que os investidores externos mantivessem a confiança na economia e na moeda, aportando recursos de investimentos ou empréstimos para o país. Contudo, em cenários de alto desequilíbrio nas transações correntes, alto endividamento e poucas reservas internacionais, os investidores tendem a perder a confiança no país, principalmente por preverem uma desvalorização da moeda a partir da “fuga de capitais”, resultando em uma profecia auto-realizável.


A partir daí surgia, então, o tripé da política econômica, com câmbio flutuante, superávit primário e metas de inflação. Para Giambiagi (2011) as sucessivas crises econômicas e políticas vividas pelo Brasil até 1998, como a crise Jânio/Jango de 1961-1963, o choque do petróleo, as crises externas, fiscal e inflacionária dos anos 1980 e o ambiente de hiperinflação dos anos 1990, sempre tiveram presente pelo menos um dos seguintes elementos presentes: alta inflação, crise externa e/ou descontrole fiscal. Com a adoção do tripé econômico o país passa a ter condições de enfrentar cada um desses problemas: “se a inflação preocupa, o Banco Central atua através do instrumento da taxa de juros; se há uma crise de Balanço de Pagamentos, o câmbio se ajusta e melhora a conta corrente; e se a dívida cresce, há que se “calibrar” o superávit primário.” (GIAMBIAGI, 2011, p188)


O problema da política do Tripé Econômico é que as variáveis são interdependentes e uma medida para “consertar” eventual problema em uma variável pode “estragar” a outra variável. Assim, o quadro abaixo explica sucintamente possíveis consequências de medidas adotadas:

Problema
Medida
Resultado indesejável 1
Resultado indesejável 2
Aumento Inflação
Aumento dos Juros
Grande afluxo de capital externo, com valorização cambial e aumento do déficit em transações correntes.
Os gastos públicos com o serviço da dívida aumentam, o que gera necessidade de maiores superávits primários.
Aumento do déficit em transações correntes
Desvalorização cambial
Diminui a concorrência de produtos externos o que pode gerar pressões inflacionárias.
Diminui o poder de compra dos trabalhadores, o que pode gerar um quadro recessivo.
Aumento do déficit público
Aumento do superávit primário
O corte de despesas ou aumento de impostos para aumentar o superávit podem ter resultados recessivos na economia. Como o principal indicador de confiança é a relação dívida/PIB, se o PIB não crescer, este indicador aumenta mesmo que o superávit aumente.


To be continue...

Referências: 

GIAMBIAGI, Fábio & ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. 4.ed ver. E atualizada. Rio de Janeiro: Elzevier, 2011.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Âncora Fiscal, Cambial eTransações Correntes - Dilemas advindos com o Plano Real

No atual cenário de ódio, raiva e intolerância, resolvi seguir o caminho contrário. Ando meio Zen-budista, procurando a sensatez, valorizando a dúvida, as incertezas e tentando sair da inevitável ideia de que sou o dono da verdade. Quantas vezes já mudei de ideia a respeito de tantos temas? Aliás, à medida que tomo mais conhecimento de certos assuntos, tenho tido mais clareza que é um equívoco se postar como o que sempre tem razão. Avançaríamos uns mil anos enquanto sociedade e enquanto indivíduos se cada qual tentasse ser mais humilde e tolerante. Sei que é utopia e posso no máximo tentar fazer valer esse padrão para mim.

Assim, vendo panela pra cá, passeata para lá, gente pedindo Ditadura, todos julgando a si mesmos experts sobre quaisquer assuntos (lendo no máximo a Veja) e com uma solução definitiva para o pecado original, qual seja, a saída de Dilma... (Uma espécie de talismã para exorcizar os próprios pecados, pois cada qual na vida pessoal faz exatamente aquilo que diz condenar na política), resolvi, então, me desgastar menos com discussões inúteis e meditar serenamente sobre alguns assuntos.

Como a economia tem gerado apreensões, resolvi rever os dados que usei em minha monografia de 2013. Até então o cenário era bem confortável e com inegáveis méritos no campo social, em especial geração de empregos, carteira assinada e valorização do salário mínimo. Sei que houveram algumas pioras e outros fatores se mantiveram estáveis. Portanto, a ideia é ver em que pé se encontram alguns dados e tentar estabelecer uma narrativa coerente para o desenrolar da História.

Minha veia de historiador sempre privilegia narrativas históricas, então, ao querer analisar o atual cenário econômico, acabei voltando lá no Plano Real. (Não desanimem, pois uma vez, para falar de educação em um trabalho de Faculdade, voltei na Idade da Pedra....kkkk)

Âncora Fiscal, cambial e Transações Correntes - Dilemas advindos com o Plano Real

Entre os economistas, geralmente, pontua-se o déficit público como um dos causadores da inflação, o que também levaria ao remédio lógico de que para combater a inflação, faz-se necessário um ajuste fiscal.

Não é por menos que todas as teorias e tentativas de estabilização da moeda (Planos Cruzado, Bresser, Verão, Collor I e II) preconizavam de alguma maneira a necessidade de um ajuste fiscal, propondo em diversas ocasiões a diminuição dos gastos correntes e medidas de ajuste. Contudo, na prática, pelas dificuldades do contexto em que se vivia, os planos acabaram por não conseguir sustentar o que propunham, mantendo e agravando a situação inflacionária.

O Plano Real incorporava o mesmo pressuposto, pois foi originalmente concebido como um programa de três fases, sendo que as duas primeiras seriam condição sinequa non para que a terceira fosse implementada: a primeira tinha como função promover um ajuste fiscal que levasse ao equilíbrio das contas do governo; a segunda fase criava a Unidade Real de Valor (URV), como um padrão estável de valor; e a terceira concedia poder liberatório à unidade de conta e estabelecia “as regras de emissão e lastreamento da nova moeda (real) de forma a garantir a sua estabilidade, desempenhando todas as funções: unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor (CASTRO, 2011; OLIVEIRA, 2012).

Porém, as reformas fiscais pretendidas se defrontaram com resistências políticas, principalmente as que afetavam os governos estaduais, o que levou ao abandono ou adiamento de boa parte das propostas. Por último, o abandono definitivo da âncora fiscal se deu pela posição nada favorável em que se encontrava o candidato Fernando Henrique Cardoso nas eleições de 1994, o que levou à antecipação do Plano Real, com o claro objetivo de modificar, com os seus frutos, a corrida sucessória. (OLIVEIRA, 2012).

A tabela abaixo demonstra a necessidade de financiamento do setor público nos anos anteriores e posteriores ao Plano Real. Percebe-se que existia uma média de déficit público, resultado primário e juros reais em patamares não tão elevados (comparado ao que veio depois), os quais decresceram substancialmente no ano do Plano Real, para logo em seguida passarem a uma trajetória de crescimento descontrolado.

Tabela 1 - Necessidade de Financiamento do Setor Público (NFSP) –Brasil – 1991-1997
Ano
Déficit Operacional
Resultado Primário
Juros Reais
1991
0,17
2,71
2,88
1992
1,88
1,57
3,45
1993
0,79
2,19
2,98
Média 91-93
0,95
2,16
3,10
1994
-1,25
5,21
3,96
1995
6,55
0,24
6,79
1996
5,33
-0,09
5,24
1997
5,5
-0,88
4,62
Fonte: Adaptação de Giambiagi; Além (2011,p.109/139).
Nota: (a) Valores em % PIB (b) (-) Superávit (c) Conceito Operacional (d) Setor Público Consolidado.

Portanto, conclui-se que o sucesso do Plano Real não dependeu da âncora fiscal, ele foi antes de tudo sustentado pela âncora cambial. O governo fixou o teto do dólar na paridade de R$1,00/US$1,00, com o piso flutuando e estabeleceu taxas de juros elevadíssimas para garantir o fluxo de capitais externos. Portanto, de um lado tentava dar competitividade à economia e evitar remarcação de preços e, de outro, garantir o afluxo de capitais para manter o câmbio apreciado e financiar o déficit em transações correntes. Ademais, vieram o compromisso com a abertura comercial e a maior inserção no processo de globalização (OLIVEIRA, 2012). Por último, Giambiagi (2011) acrescenta que o Plano Real também foi salvo pelo retorno da ampla liquidez no mercado internacional, que buscou rentabilidade nos mercados emergentes.

Hoje, todos consideram inquestionável a importância de se controlar a inflação, pois em ambientes de descontrole inflacionário, a economia se desorganiza e os setores mais ricos se defendem melhor do que os mais pobres, aumentando a desigualdade. Contudo, muitos economistas citam diversos problemas advindos desse formato de âncora cambial e que sua lógica teria permanecido mesmo após o abando formal em 99.

Bresser-Pereira é um dos que mais criticam essa engenharia baseada em um câmbio valorizado, pois tal política levada a cabo por vários anos, simplesmente destruiria os setores industriais menos avançados e inviabilizaria o surgimento/consolidação de indústrias de ponta. Para a teoria econômica liberal, nada disso seria problema, pois cada país deve se especializar naquilo que tem maior vantagem comparativa, sendo a quebra de uma indústria sinal de sua ineficiência e que os recursos serão melhor alocados a partir de então. O debate em torno disso é longo e inconclusivo, mas empiricamente, dificilmente se encontram grandes economias a sustentar grandes populações baseadas apenas em commodities.

E para Bresser-Pereira, a questão não é de ineficiência, pois a simples descoberta de uma riqueza natural, como o petróleo, não poderia inviabilizar toda uma série de empreendimentos industriais. Acontece que usualmente é isso que acontece, pois estas riquezas geram exportação, trazem dólares ao país e valorizam o câmbio, o que por sua vez, começam a inviabilizar uma série de empreendimentos, levando à desindustrialização. Abaixo, é possível observar que o Brasil parece estar trilhando esse caminho.



* Dados acumulados em 12 meses até Junho
Fonte: Funcex



Outra possível consequência negativa de tal cenário, diz respeito ao fato de que um câmbio sobrevalorizado e uma balança comercial sustentada por produtos primários costumam atrair inevitáveis desequilíbrios na balança de pagamentos, pois os produtos naturais possuem maior variabilidade de preço e não dão conta de compensar o déficit em transações correntes.

 Fonte: Banco Central
Elaboração Própria

Normalmente, o Brasil possui uma balança comercial superavitária, exportando mais do que importa, principalmente devido ao peso das commodities. Por outro lado, via de regra, sai mais dinheiro do que entra quando o quesito é remessa de lucros ao exterior, o que ocasiona um déficit na balança de serviços. A soma das duas (em resumo) nada mais é do que o resultado das Transações correntes e por isso o quase inevitável déficit como visto acima. Nos últimos 20 anos, apenas no período do primeiro governo Lula é que se conseguiu um superávit em transações correntes, fruto do alto preço das commodities no período.

Para 2015, o quadro não vem apresentando melhoras mesmo com a desvalorização do câmbio. O último relatório do Banco Central apontou que o déficit de transações correntes em março foi de 4,5% do PIB. Para se ter uma ideia, a grande desvalorização cambial que o Brasil sofreu em 1999, quando teve que pedir socorro ao FMI, se deu em um quadro de déficit em transações correntes na casa dos 4%.

A diferença é que hoje o país possui reservas internacionais mais robustas, as quais foram prudentemente acumuladas a partir de 2003, por isso o Brasil não apresenta um quadro econômico tão grave como o do período FHC.

* De 1998 até 2005 os dados correspondem ao conceito de reservas líquidas ajustadas, referido nos acordos com o FMI.** Dados de Junho 
Fonte: Banco Central


To Be Continue...

Referências: 

1- CASTRO, Lavinia Barros de. Esperança, Frustração e Aprendizado: A História da Nova República. In: GIAMBIAGI, Fábio et. al (Orgs). Economia Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro. Elzevier, 2011. p.97-129.

2- GIAMBIAGI, Fábio & ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. 4.ed ver. E atualizada. Rio de Janeiro: Elzevier, 2011.

3-OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. Política econômica e crise mundial: Brasil, 1980-2010. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.