segunda-feira, 25 de maio de 2015

Desvendando o discurso anti-corrupção II (indignação seletiva)

Certa vez, viajando a trabalho com um colega, o nobre companheiro de estrada comia quitutes diversos e jogava sem qualquer cerimônia papéis e embalagens pela janela. Tipo de conduta que me incomoda, mas que também só resta a resignação, pois não me proponho a ficar corrigindo homens adultos, ainda mais uma companhia de trabalho. Pois bem, e não é que mais alguns quilômetros de asfalto à frente, nos deparamos com restos de alguma carga de construção civil jogada ao lado da estrada e o nobre colega exclama:

-“Que isso!?! Que absurdo! Quem jogou essa porcaria na beira da estrada? Vagabundos! Tinha que prender. Quanta falta de educação. Cadê as instituições?! Brasil não é um país sério...

Mesmo já calejado com as frequentes incoerências dos que se acham "indignados" com comportamentos morais dos outros, confesso que pelo curto espaço de tempo entre uma coisa e outra, fiquei um pouco surpreso e com vontade de rir. 

Nas  manifestações do dia 15 de março, tivemos outras condutas “interessantes” a ilustrar minhas observações:








Bons exemplos de cara de pau, não? Mas também podemos chamar de indignação seletiva, dupla moral ou hipocrisia. Mas convenhamos que a grande maioria que lá estava não se envolveu em casos de corrupção tão descarados, seria desonestidade e maniqueísmo de minha parte.

No dia a dia, o mais comum é encontrarmos uma parcela maior de ditos "cidadãos de bem" (ou bens), que em luta contra um "Estado Tirano", eventualmente façam uso de procedimentos como compra de recibos médicos, molhar a mão do guarda ou falsificar uma carteirinha de estudantes para evitar os "abusos" do Estado, ou das redes de cinema e casas de show. Mas fora isso e a desculpa já bem relatada de legítima defesa contra o "Estado que tudo suga", todos sempre juram serem os melhores seguidores da boa moral e não se envolvem em casos tão abusivos como os acima. Se a questão de escala difere um do outro, aí já é um papo para outro dia.

Mas acredito que a artimanha da indignação seletiva não é só uma questão de fechar os olhos para os próprios mal feitos e apontar o dedo para os erros dos outros. Na verdade, mesmo um cidadão que tenha a "ficha limpa", ou seja, que não tenha aprontado uma "corrupçãozinha" aqui ou acolá, para escapar dessa "fúria arrecadatória" desses "políticos canalhas", ainda assim, é provável que faça uso da dupla moral no seu dia a dia, pois os seres humanos não são deuses.

Como é impossível abarcar toda a realidade, seja do ponto de vista cognitivo, seja do ponto de vista moral ou sentimental, é natural que todo ser humano selecione/recorte seus objetos de conhecimento/moral/afeto, com boa dose de conveniência/arbitrariedade, ou mesmo má fé...

Assim, é bem improvável que as pessoas se indignem com a mesma intensidade em relação a abusos cometidos na Índia frente aos da sua cidade, o mesmo em relação a seus familiares frente a vizinhos. Na suposta "luta por justiça", no fundo as pessoas tendem a proteger "os seus" e ignorar os "mais distantes". Isso envolve psicologia, sociologia, antropologia e sei lá quantas outras ciências mais.

Estes dias estava relendo um livro de Adam Smith sobre os sentimentos morais e me deparei com a seguinte passagem:

"Suponhamos que o grande império da China, com suas miríades de habitantes, fosse subitamente engolido por um terremoto, e imaginemos como um humanitário da Europa, sem qualquer ligação com aquela parte do mundo, seria afetado ao receber a notícia dessa terrível calamidade. Imagino que, antes de tudo, expressaria intensamente sua tristeza pela desgraça de todos esses infelizes, faria muitas reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana e a vacuidade de todos os labores humanos, que num instante puderam ser aniquilados. (...) E quando toda essa bela filosofia tivesse acabado, quando todos esses sentimentos humanos tivessem encontrado sua expressão definitiva, continuaria seus negócios ou seu prazer, teria seu repouso ou sua diversão, com o mesmo relaxamento e tranquilidade que teria se tal acidente não tivesse ocorrido. O mais frívolo desastre que se abatesse sobre ele causaria uma perturbação mais real. Se perdesse o dedo mínimo de manhã, não dormiria de noite, mas desde que nunca os visse, roncaria na mais profunda serenidade ante a ruína de centenas de milhares de seus irmãos. E a destruição dessa imensa multidão parece claramente apenas um objetos menos interessante do que seu reles infortúnio particular." (pg. 105, Teoria dos Sentimentos Morais)

Gostei muito desse trecho pela universalidade da ideia e por conter descrições similares a desgraças relativamente recentes. Quantas catástrofes gigantescas tivemos nos últimos anos? Aquele tsunami na Indonésia matou na casa dos centenas de milhares... E por quanto tempo as pessoas se sensibilizaram com o episódio? O que realmente trouxe de perturbação para o seu dia a dia? Enfim, acredito que não esteja muito distante do descrito por Adam Smith. O mais próximo sempre afeta mais as pessoas, ainda mais se for na própria carne.

Mas o episódio acima também retrata um tipo frequente de dupla moral. Ainda que as pessoas não se sintam afetadas no mesmo grau com infortúnios dos "outros" quando comparados ao próprios, a verdade é que a própria sensibilização dos infortúnios dos outros costuma vir acompanhada de enormes doses de seletividades.

Assim, os milhares de atentados no Iraque, na África passam como um raio, enquanto um atentado ao jornal Charlie Herbou traz um frenesi de indignação. A morte violenta de um menino da periferia não gera comoção, não aparece seu nome e fica por isso mesmo, enquanto uma morte de alguém em melhores condições vêm acompanhada de marchas pela paz e luto. Cai um avião e ficam todos traumatizados, enquanto um caminhão com retirantes que vira na pista é nota de rodapé. Quando morrem centenas em náufragos tentando chegar à Europa, não gera a mesma comoção, nem repúdio do que um naufrágio de um navio italiano (na verdade, com a ideia de imigração roubar empregos na Europa, alguns passam a ver o episódio com relativa simpatia).

No quesito imigração, o cenário tende a piorar. A Líbia era o país da África com melhor IDH, criou-se o sentimento "humanitário" de derrubar um tirano e implantar a "democracia", mas transformaram o país em grupos de gangues, uma verdadeira catástrofe social. Já o petróleo está garantido, enquanto milhares passam a tentar a sorte na Europa. E como os governos não querem receber aqueles que fogem do que eles mesmo criaram, inventa-se novos demônios para justificar as medidas repressivas. A culpa agora são dos traficantes, dos piratas...

Enfim, os exemplos são infinitos...O pior é que a mídia ampliou e muito essa hipocrisia seletiva... 

E no final das contas é exatamente esse expediente que se usa na maioria das conversas sobre política e corrupção.

Nessas conversas diárias de trabalho, lazer, no cabeleireiro, ou táxi estou cansado de todo dia ouvir as mesmas pessoas se "indignarem" sempre das mesmas pessoas/partidos com quem ela não simpatiza. Tem sempre mil razões para pintar um José Dirceu da vida como o gênio do mal, o Lúcifer do Século XXI, ainda que as bases para tais convicções seja, quase sempre, uma vontade de acreditar no que leu em alguma revista semanal, do que propriamente uma certeza sobre os fatos que relata. E se o caso imoral de corrupção for de um político com quem a pessoa simpatiza ou votou, vale o benefício da dúvida, a necessidade de provas "robustas", o direito à defesa. No limite, irá considerar que aquilo é cortina de fumaça da cambada sociopata que ele odeia... E Se o Judiciário condenar estes, só aplausos, Joaquim Barbosa vira um justiceiro! Se absolve seus adversários, foi comprado, deturpado, enviesado... Por último, se os condenados forem os "seus", inverte-se tudo, a Justiça vira "aparelhada" pelo partido no poder, o Estado Policial que Gilmar Mendes e Demóstenes Torres denunciaram quando predeu-se Daniel Dantas ou Eliane Tranchesi... 

Lava-Jato?! Tem petistas? aplausos e odes aos que zelam pela Justiça... Zelotes e HSBC?! Não tem petistas? Só endinheirado? Assovia e finge que não viu... Um helicóptero de um senador foi pego com cocaína? É apadrinhado de um político em quem votei? Nada de bater panela...E se não der para esconder, diz-se que foi traído.

Enfim, é claro que petistas ou qualquer um também possa usar do mesmo procedimento. Talvez, a diferença esteja no grau em que cada um exagere desses procedimentos ou mesmo na honestidade em que cada um acredita no que fala. Ou então, na importância que se dá a uma discussão meio que sem saída. Desde Maquiavel que já se demonstra que na política não existe essa moral de anjos que alguns juram defender... (e obviamente não aplicam para si próprios). Quase sempre se propor a uma moral de anjos, traz a própria ruína ou faz-se a política dos inimigos. Não que não existam limites, cada qual irá impor os próprios... Mas é muita hipocrisia ou ingenuidade achar que certos procedimentos sejam atributo de um partido específico e não do sistema.

Aliás, acredito que muitos, de tantos se embebedarem das próprias falácias que pregam, acabam por acreditar nelas. Talvez, seja a necessidade de um ambiente maniqueísta, como um mecanismo de auto-engano, até uma auto-defesa contra os próprios demônios... 

Tentarei escrever mais a respeito no próximo post....









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