quinta-feira, 9 de julho de 2015

Dilemas do Plano Real IV - Superávit Primário

O último pé do tripé é o superávit primário, o qual ganha proeminência na economia do setor público a partir de 1999. Basicamente, a filosofia subjacente ao superávit primário, é o Estado ter que mostrar ser de confiança junto aos agentes econômicos. O “mercado” se sentiria predisposto a investir, apenas a partir do momento em que o Estado mostre ser “responsável”, através de economias no setor público, as quais permitam estabilizar a relação Dívida/PIB e a partir daí cumprir com o pagamento dos títulos públicos que eles financiam.

Essas teorias se opõe às teorias keynesianas e advogam que ao invés da economia retrair com o ajuste fiscal, a economia se expandiria devido ao entusiasmo dos agentes racionais para com os cortes de gastos. A esse fenômeno dão o nome de contração fiscal expansionista, quando o mercado visualizaria sinais de "responsabilidade" do setor público e vislumbraria menos impostos futuros. Nesse sentido, o mercado aumentaria seus investimentos ainda que o mercado estivesse em contração...

Por sua vez, Oliveira (2012) resume a história dos ajustes e a lógica subjacente:

[...] a centralidade que adquirirá a política fiscal exigida no acordo com o FMI não foi mais do que a adequação do país às novas regras contempladas no paradigma teórico do capitalismo financeiro globalizado sobre a responsabilidade do Estado em assegurar as condições para a sustentabilidade da dívida; [...] (OLIVEIRA, 2012, p. 197).

Criou-se, então, uma fórmula para definir o superávit primário que equilibra a relação Dívida Pública/PIB.

 
   

i-taxa de juros.
d- Dívida Pública/PIB
y- Taxa de variação nominal do PIB
h- Superávit Primário como proporção do PIB
s- Senhoriagem como proporção do PIB.



Dessa forma, o superávit primário necessário para equilibrar a relação dívida pública/PIB é uma relação direta da taxa de juros e da própria relação dívida pública/PIB (d), e inversa do crescimento da economia. Isso quer dizer que quanto maior for a dívida e/ou a taxa de juros, mais recursos o governo terá que economizar para se comprometer com a despesa de juros. Por outro lado, se a economia estiver crescendo, o governo pode manter um déficit mais elevado sem pressionar d, já que o aumento do numerador é compensado pelo aumento do denominador. Por último, caso o governo se financie por emissão monetária, não haverá impacto na dívida pública, nem nos juros, tornando-se menor a necessidade de cortar gastos ou aumentar receitas e, portanto, podendo-se diminuir o superávit primário, contudo, sofrerá por outro lado os impactos de uma inflação mais elevada (GIAMBIAGI; ALÉM, 2011).                                           

E para alguns, o principal instrumento para aumentar o superávit primário é o ajuste fiscal. Como foi visto, este era demandado desde os anos de 1980 para auxiliar no combate à inflação. Mas ganha dimensão de política obrigatória apenas a partir de 1999, quando as metas estabelecidas foram acordadas com o FMI e também passaram a constar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). O gráfico abaixo demonstra sua evolução ao longo dos anos.


Pelo gráfico, percebe-se que a preocupação com o superávit primário também se estendeu ao governo Lula, onde o PT, na prática, rompeu com antigos posicionamentos e críticas feitas ao excesso de gastos com juros e com a dívida. Para ganhar a confiança do mercado acabou sendo mais realista que o Rei, deixando o próprio FMI surpreso com aumentos unilaterais nas metas de superávit primário.  

A partir da saída de Palocci e principalmente a partir da crise de 2008 algumas inflexões foram observadas na política econômica e fiscal. Enquanto nas crises de 1995, 1997, 1999 e 2002, o governo FHC reagiu com aumento do aperto fiscal, tentando obter infrutiferamente uma contração fiscal expansionista, o governo Lula reagiu à crise usando das velhas ferramentas keynesianas. Alguns autores destacam ter sido uma política exitosa. As medidas foram contrárias às da época de FHC, quando se optou por medidas de austeridade, com aumentos de juros e cortes de gastos.

Contrariando as expectativas do mercado, o governo Lula adotou uma postura sem precedentes na história recente do país: uma política de combate aos efeitos da crise internacional mediante medidas expansionistas nas áreas fiscal, monetária e creditícia. Em linhas gerais as principais ações do governo Lula podem ser agrupadas em cinco grupos de medidas: (1) o aumento da liquidez e redução da taxa Selic; (2) a manutenção da rede de proteção social e dos programas de investimentos públicos mesmo em um contexto de queda de receita do governo; (3) as desonerações tributárias temporárias; (4) o aumento da oferta de crédito por parte dos bancos públicos; (5) o aumento do investimento público em habitação (BARBOSA, 2013, p.81).

As NFSP (déficit público) só foram mais altas no ano de 2009, retornando à sua trajetória de queda a partir dos anos seguintes. Já o superávit primário cresceu novamente a partir de 2010, sem, contudo, retornar para os mesmo patamares de antes da crise. Com isso, para os anos de 2011 e 2012, observa-se que o superávit primário e as NFSP foram menores do que na época da crise, quando para os anos de 2007-2010 atingiram 2,88% e -2,63% respectivamente em média. Já o superávit do biênio 2011-2012 ficou em média de 2,75% e as NFSP em média de -2,55%, demonstrando que o governo federal tinha as finanças públicas sob razoável controle e com perspectiva de queda do déficit público e com opção de superávits primários menores. Dessa forma, parecia ser possível um relaxamento lento e progressivo do superávit, o qual caia em proporção do PIB menos que os juros, a fim de que fosse possível também manter o déficit público em queda. 

Quando confrontado estes números com o crescimento do PIB, é possível especular que, a partir de 2011, frente ao resultado de persistência da crise mundial, o governo Dilma tentou manter a estratégia adotada em 2008, ampliando os incentivos fiscais e tentando fomentar a economia através do consumo.



Nesse sentido, o superávit primário continuou caindo depois de 2011, mas sem resultados significativos no aumento do PIB e um resultado desastroso em 2014. Enquanto os inventivos dados em 2008, permitiram uma queda baixa do PIB em 2009 (o resto do mundo teve baixas maiores) e um super crescimento em 2010, estes incentivos não demonstraram os mesmos resultados a partir de 2011.

O PIB, então, continuou patinando a despeito dos diversos incentivos à oferta e à demanda. A verdade é que a economia não é ciência exata e os administradores lidam com incertezas diversas quando fazem apostas em determinadas políticas. A grande questão é que ninguém nunca sabe ao certo qual seria a época ideal para rever uma política de incentivos fiscais. Existe um pouco de tentativa e erro. Normalmente, a teoria keynesiana recomenda que os incentivos sejam dados no período de recessão e retirados no período de expansão, quando com maior crescimento do PIB e da arrecadação, o governo poderia compensar os déficits dos períodos anteriores. O problema é que quando o crescimento não vem, aí o governo lida com escolhas difíceis. Até quando é possível levar uma política expansionista?

Aqui é importante levantar um parêntese a respeito da visão keynesiana do déficit público e do investimento. Keynes não propunha orçamentos desequilibrados de maneira habitual, mas sim para fazer frente a contextos de falta de demanda e horizontes recessivos. Essa questão é importante, pois a “esquerda populista que invoca Keynes e o princípio da demanda efetiva para incorrer em déficits públicos crônicos e [a] ortodoxia míope que é incapaz de perceber os momentos nos quais uma política fiscal expansionista é legítima” (BRESSER- PEREIRA, 2007, p.169), acabam por apresentar visões rígidas anti ou pró Estado que nem sempre são adequadas para contextos específicos de recessão ou expansão econômica acentuada.

É possível que o governo já tinha detectado a ineficiência dos incentivos, mas não quis arriscar mudança de rota em ano eleitoral. Mas talvez o maior problema advenha do fato de que a política de superávit primário seja uma âncora para que os títulos públicos se mantenham valorizados. Dessa forma, os rentistas exigem sempre juros mais elevados, bem como compromissos de que o governo tenha capacidade de arcar com os juros elevados, daí a predileção por superávits primários.

Tudo isso são questões de âmbito político, mas que não apresentam soluções simples. Mesmo uma solução mais "radical", como uma auditoria da dívida externa, prevista na Constituição Federal apresenta dificuldades políticas e econômicas. Sabe-se que esse tipo de demanda era muito comum na década de 1980, onde figuras como Fernando Henrique Cardoso demandavam uma solução do tipo e alertavam que os contratos foram feitos à revelia do Congresso Nacional*. Por sua vez, o próprio PT foi, por muitos anos, um partido a questionar os pagamentos da dívida. Não é por menos que a questão ganhou status constitucional no Ato das disposições constitucionais transitórias de número 26, a exigir uma auditoria da dívida em até 5 anos. Contudo, a auditoria nunca aconteceu e esse tipo de reivindicação se arrefeceu ao longo dos anos. A última tentativa foi em 2009 e 2010, quando se instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Dívida Pública, na Câmara dos Deputados, a qual também constatou indícios de várias irregularidades, mas também sem qualquer efetividade prática. Um palpite para essa questão é que a auditoria se configura em uma alternativa legítima e soberana para o problema do endividamento, entretanto, o impacto político de tal medida no cenário financeiro internacional seria enorme e de consequências imprevisíveis. Por isso, em um cenário em que a dívida já não desgasta tanto como na década de 1980, as principais forças políticas do país acabaram abandonando essa saída.

Minha opinião é que somente em situações extremas é que esse caminho se torna inevitável. Os rumos da Grécia demonstram isso e a decisão pelo NÃO parece acertada, ainda que não seja uma solução, mas sim uma escolha de algo menos pior. De toda forma, os dilemas e dificuldades irão continuar. Quando se tem credores fortes, estes possuem mecanismos fortíssimos (e nada democráticos) de pressão. Contudo, quando o preço a pagar é muito elevado, pode ser que moratórias e auditorias sejam os caminhos mais indicados. A própria Alemanha nunca pagou suas dívidas, tendo passado por cima delas após a primeira guerra via inflação, e após a segunda guerra passou novamente por cima das dívidas via "perdões" dos principais credores.

No caso do Brasil, os dados financeiros estão longe de apontar uma crise da dimensão da Grécia. Tanto a dívida líquida como a bruta estão em patamares aceitáveis e bem abaixo da época do FHC. A Grécia teve retração do PIB de 25% entre 2009 e 2015, enquanto o Brasil parece que vai arcar com retração do PIB apenas neste ano de 2015.

De toda forma, em vista do déficit público de 6% em 2014, bem como um cenário político conturbado, o governo Dilma resolveu fazer uma inflexão inversa da que foi feita pelo governo Lula em 2008. Teria sido para sustentar o segundo mandato? Teria sido uma pressão inevitável das forças rentistas? Teria sido uma aposta errada? Era possível manter a política de incentivos fiscais sem crescimento do PIB? Até quando há que se apostar em políticas keynesianas quando o crescimento econômico não vêm?

Enfim, são questões difíceis e acredito que não hajam respostas prontas e definitivas. Seja por que motivo for, o governo federal apostou na ideia do ajuste fiscal como solução para a crise econômica. Cabe ressaltar, que tal ajuste está anos luz de distância dos ajustes promovidos pelo FHC ou pelo próprio Lula. Um superávit primário de 1,2% está abaixo de todos os superávits primários realizados antes de 2014. Até então, o gráfico demonstra que o menor superávit primário tinha sido de 2% no ano em que se combatia a crise internacional. Talvez, a mudança seja um pouco brusca devido ao déficit de 6% do ano passado, mas não é lá tão radical e ortodoxa quanto alguns pensam. No meu entender, se o Aécio tivesse ganho as eleições, o ajuste seria muito maior.

O problema é que tal ajuste não tem mostrado efetividade, seja para alcançar os 1,2%, seja para aquecer a economia via confiança dos mercados. Até maio de 2015, o superávit acumulado estava em 0,28% do PIB, demonstrando que dificilmente se chegará aos 1,2%. Ademais, a retração da economia faz com que a dívida como proporção do PIB aumente, ainda que a dívida diminua. Se o denominador decresce mais rápido que o numerador, a consequência é um aumento da dívida/PIB.

Ou seja, a solução de ajuste fiscal e contração expansionistas parece mais uma vez que também não dará certo. Mas a verdade é que manter a política de expansão fiscal também não era garantia de crescimento. Visto desse mês de julho e pelo difícil cenário político existente, acredito que o governo errou não tanto na política econômica, mas na forma como ela foi apresentada e construída. Talvez, um superávit primário menor já fosse suficiente para "acalmar" os mercados. Contudo, mais importante do que prometer um ajuste fiscal era sinalizar para a base política que a elegeu, que o ajuste também seria em cima dos mais ricos. A ideia de imposto sobre grandes fortunas ou sobre herança poderia ser uma boa forma de manter o apoio de quem a elegeu.

Ademais, não deveria ficar num discurso monocórdico do ajuste, o que afastou a base política de quem a elegeu e tirou muita perspectiva/ânimo de quem mais teria disposição para defender o governo. Do outro lado, é possível sim que tenha havido certa acomodação com essas concessões feitas, mas também parece que foram insuficientes. Numa perspectiva psicanalítica, os coxinhas não absorveram o luto da derrota e continuaram inflamando as ruas com relativo sucesso. Houve até certo descasamento do que as tais lideranças exigiam e do que partidos como o PSDB reivindicavam. Mas como o quadro econômico não vem melhorando e com um governo sob constante ataque midiático/jurídico, além de não demonstrar reação, parece que a perspectiva golpista ganhou novo ímpeto. Só que dessa vez com maior participação de lideranças do PSDB e do próprio PMDB.

É possível voltar atrás do ajuste fiscal? Acredito ser muito difícil... Talvez era hora de levantar novas bandeiras, de colocar em discussão o imposto sobre grandes fortunas e/ou herança. De se abrir mais claramente às demandas dos novos tempos, como criminalização da homofobia e outras demandas LGBTTs, descriminalização da maconha, mobilidade urbana/ciclovias...(olha como o Haddad foi bem recebido nesta seara). De ser mais incisivo na questão contra o financiamento privado, etc...

Se não é possível no curto prazo ter crescimento econômico com ou sem ajuste, que se adote bandeiras progressistas. Até o FHC andou empunhando a bandeira da descriminalização da maconha quando sua imagem estava em baixa...E se a bandeira contra a redução da maioridade penal, ainda que super-impopular, demonstrou capacidade de aglutinação entre setores representativos da sociedade, porque as outras bandeiras não teriam efeitos ainda melhores? É certo que não é possível no curto prazo e com esse Congresso passar todas essas bandeiras, mas pelo menos gera-se um caldo de entusiasmo na militância progressista e ambiente mais propício para frear as intenções golpistas que virão.


*Em 1987, Fernando Henrique Cardoso foi relator da Comissão Especial do Senado Federal para a Dívida Externa. “As principais irregularidades encontradas foram: prática do anatocismo; alta unilateral de juros; corresponsabilidade dos credores; ilegalidades na negociação da dívida; falta de transparência; negociações sigilosas; interferência direta do FMI; articulação de credores; elevados custos sociais da dívida externa; existência de ‘custos injustificáveis’; estatização de dívidas privadas; exportação de capitais nacionais; utilização deliberada de empresas estatais para obtenção de empréstimos no exterior; desequilíbrio contratual das partes negociantes; pulverização de credores e dificuldade de controle por parte do Banco Central; comprovação do reduzido do (sic) valor da dívida no mercado secundário [...]” (FATORELLI, 2012, p.39).

Referências:

-OLIVEIRA, Fabrício Augusto de. Política econômica e crise mundial: Brasil, 1980-2010. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.

-GIAMBIAGI, Fábio & ALÉM, Ana Cláudia. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. 4.ed ver. E atualizada. Rio de Janeiro: Elzevier, 2011.

-BARBOSA, Nelson. Dez anos de política econômica. In: SADER, Emir (org.). 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO, 2013.