terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Reforma da previdência - 1 (discussão teórica)

Em 2013 fiz um trabalho acadêmico sobre a previdência. Tendo em vista a atual reforma escravocrata vou tentar expor as principais ideias e dados a respeito do tema, especialmente sobre o INSS. Não pretendo atualizar os dados, ainda que no campo da receita deva ter havido diminuição de arrecadação, tanto por desonerações como pela atual crise econômica que diminui o número de contribuições. Acredito que isso não prejudica as ideias centrais contidas aqui. E na medida do possível vou atualizando os posts para colocar outras dimensões do problema e da discussão. Mas já adianto que este primeiro post é um pouco mais chato.

As duas visões

Todo o ano, jornais e estudiosos divulgam números demonstrando um déficit da previdência e uma situação possivelmente explosiva caso mudanças não sejam feitas no curto ou médio prazo. Boa parte dos estudos leva em conta questões demográficas e que apontam para o aumento da razão de dependência dos idosos e para uma inversão da pirâmide etária. Via de regra, vaticinam que as reformas previdenciárias anteriores foram insuficientes e novas reformas deveriam ser feitas.

Contudo, não existe apenas uma maneira de encarar a questão, sendo que muitas interpretações partem de pressupostos arbitrários, os quais não deveriam ser expostos como verdade absoluta. As duas principais linhas interpretativas podem ser divididas em liberal/fiscalista e constitucionalista.Vale ressaltar que existe uma infinidade de outros cálculos para a questão da previdência, os quais serão expostos  na medida do possível.

Portanto, o debate da previdência não pode se encerrar apenas na questão de dados demográficos e fontes de receita contributiva. A discussão como vimos, insere-se no tipo de regime de previdência e no tipo de Estado de bem-estar, variando a partir daí os procedimentos de criação e contabilização de receitas e despesas. 

Visão fiscalista

Esta visão tem como seu principal expoente Fábio Giambiagi, mestre em Ciências Econômicas pelo Instituto de Economia da UFRJ, integrante do Departamento Econômico do BNDES desde 1996.

De maneira geral, a visão fiscalista parte de uma previdência baseada no regime de capitalização. Importante lembrar que este tipo de sistema não é adotado por quase nenhum país e não faz parte do estabelecido em nossa Constituição. A ideia central é que o benefício auferido por cada um seja proporcional ao montante de sua contribuição. Assim, caso um indivíduo receba mais do que tenha contribuído, conclui-se que este dinheiro estaria sendo retirado de outros contribuintes e, portanto, estaria configurada a injustiça. Giambiagi (2007), por exemplo, considera que o auxílo-doença seria simplesmente um seguro de graça, já que o trabalhador não paga nada a mais por este benefício Os estudiosos desta linha consideram que os beneficiários são, na sua maioria, da classe média urbana, que aposentam antes da idade mínima e auferem benefícios que contribuiria para aumentar a desigualdade social.

Assim, os fiscalistas não se prendem muito aos textos legais e constitucionais, ainda que algumas modificações recentes na legislação infraconstitucional tenham dado maior sustentação aos seus argumentos. A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) através do seu art. 68 criou o Fundo do Regime Geral de Previdência Social que estabelece como fontes de receita:

"O Fundo será constituído de: I.  Bens móveis e imóveis, valores e rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização deste; II.  Bens e direitos que, a qualquer título, lhe sejam adjudicados ou que lhe vierem a ser vinculados por força de lei;III. Receita das contribuições sociais para a seguridade social, previstas na alínea a do inciso I  [contribuição  social do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada  incidente sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos à pessoa física]  e no inciso II  [contribuição social do trabalhador e dos demais segurados da previdência social]  do art. 195 da  Constituição; IV.  Produtoda liquidação de bens e ativos de pessoa física ou jurídica em débito com a Previdência Social; V.  Resultado da aplicação financeira de seus ativos; VI. Recursos provenientes do orçamento da União". 
(§1°, Art. 68 da LEI COMPLEMENTAR nº 101/2000).

Assim, contribuições como COFINS e CSLL são rotuladas como transferências da União, metodologia que é empregada pelo INSS. Nesse sentido, para os fiscalistas, importante é medir as despesas previdenciárias e compará-las com as receitas. Estas, por sua vez, estariam restritas à contribuição do empregado e do empregador. 

Visão constitucionalista

Alguns nomes que adotam esta linha interpretativa são Denise Lobato Gentil, doutora em economia e professora da UFRJ; Eduardo Fragnani, doutor em economia, professor do Instituto de Economia da Unicamp e técnico pesquisador do IPEA; José Celso Cardoso Júnior, doutor em economia no Instituto de Economia da Unicamp e técnico pesquisador do IPEA.


A visão constitucionalista parte basicamente dos textos Constitucionais, os quais configuram um sistema previdenciário de repartição simples, com responsabilidade solidária e tripartite. Segundo Ruprecht:

 "A Seguridade Social implica a aceitação da responsabilidade de toda a sociedade para garantir a segurança econômica a seus membros. Admitida a escolha de formas equitativas de financiamento, a seguridade social vem representar uma solidariedade que não significa um benefício, mas um direito de todos e para todos (RUPRECHT. 1996, apud MIRANDA, 2010)"

Segundo Vianna, 

"A opção pela expressão Seguridade Social, na Constituição brasileira de 1988, representou um movimento concertado com vistas à ampliação do conceito de proteção social, do seguro para a seguridade, sugerindo a subordinação da concepção previdenciária estrita, que permaneceu, a uma concepção mais abrangente. Resultou de intensos debates e negociações, e significou a concordância (relativa, na verdade) de diferentes grupos políticos com a definição adotada na OIT: seguridade indica um sistema de cobertura de contingências sociais destinado a todos os que se encontram em necessidade; não restringe benefícios nem a contribuintes nem a trabalhadores; e estende a noção de risco social, associando-a não apenas à perda ou redução da capacidade laborativa  –por idade, doença, invalidez, maternidade, acidente de trabalho  –como, também, à insuficiência de renda, por exemplo 10. (VIANNA, 2003, apud GENTIL, 2006, p.37)"

A origem dessas premissas se dá principalmente nos Estados de bem-estar, formados após a segunda Guerra Mundial. A chamada Era de Ouro por Hobsbawn, em que o consistente crescimento econômico, os traumas da guerra, a bipolaridade do mundo e seus confrontos ideológicos teriam levado a que os Estados capitalistas aumentassem a preocupação com questões sociais. Marshall (1967 apud Araújo 2004) explica que o seguro social apoiava-se numa nova contratualidade que diferia do seguro privado voluntário. Este tem receita proveniente do pagamento dos prêmios pelos segurados e da renda de suas aplicações, seguindo princípios de cálculo atuarial, à dimensão dos riscos. O seguro social, apesar de copiar a técnica atuarial, tem a sua contratualidade fundada em princípios de justiça distributiva e em decisões políticas. O caráter obrigatório do seguro social sob a égide do Estado rege-se pelos princípios da equidade e da justiça. No mesmo sentido Gentil (2006) argumenta que o preceito de equilíbrio atuarial contradiz a natureza da seguridade.

Mas a principal consistência argumentativa dessa linha não está em preceitos filosóficos e históricos, mas principalmente na Carta Magna do país. Assim, a Constituição da República teria definido claramente a seguridade social no art. 194 e o Orçamento da Seguridade Social e suas fontes de recursos no art. 165, parágrafo 5.

"Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
5º. A lei orçamentária anual compreenderá: 
I- O orçamento Fiscal referentes aos poderes da Uniãos, seus fundos, órgão e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público;
II- O orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto;
III- O orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo poder público. (BRASIL, 1988)."

Assim, a partir da leitura desses artigos, fica claro que a previdência faz parte do sistema de seguridade social. Na verdade, constata-se que nem mesmo existe um orçamento da previdência, sendo qualquer tentativa de elaborá-lo baseada em legislações infraconstitucionais ou mesmo em arbitrariedades. Uma coisa seria elaborar estudos para verificar sustentabilidade do sistema caso ele fosse de capitalização, outra coisa é afirmar que nossa previdência é deficitária com base em premissas que são meras conjecturas abstratas. 

E a Constituição no seu art.195 estabelece quais serão as fontes de financiamento da seguridade social. Cabe salientar o seu enunciado: “A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal, e das seguintes contribuições sociais:”. Dessa forma, observa-se que o nosso sistema é tripartite, com contribuições do empregador, do empregado e do Estado, tendo um caráter solidário (uns contribuem mais que os outros e os benefícios não são necessariamente proporcionais ao volume da contribuição). As contribuições que financiam a seguridade social são as contribuições dos empregadores e trabalhadores à seguridade social (contribuição ao INSS), a COFINS, inclusive sobre importações, a CSLLe a receita de concursos de prognósticos. Gentil (2006) ressalta que o art. 195, além de estabelecer os recursos que financiarão a seguridade social, ainda estabelece que o governo poderá financiar a seguridade com recursos do orçamento fiscal. O inverso, porém, não é verdadeiro, contudo, os autores demonstram que é justamente o inverso que vem acontecendo.

Mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LeiComplementarnº 101/2000), a qual vimos anteriormente que legitima o discurso fiscalista, por outro lado, também  explicita  com clareza  que o  sistema  é  formado  pela contribuição dos três participantes – empregadores, trabalhadores e Estado. A Lei n. 8.212 de 24 de julho de 1991, a chamada “Lei Orgânica da Seguridade Social” também reforça o já estabelecido pela Constituição e o artigo 17 e 19 desta mesma Lei atribui legitimamente ao Estado o repasse dos recursos oriundos da COFINS e CSLL, entre outras contribuições, além de permitir o pagamento dos encargos previdenciários com as contribuições (Cofins e CSLL) da seguridade social. Além da receita das contribuições sociais, financiam o Orçamento da Seguridade Social as receitas próprias dos órgãos que integram esse Orçamento. São receitas operacionais, patrimoniais, relativas à prestação de serviços, taxas pelo exercício do poder de polícia, entre outras. E, por determinação de sucessivas Leis de Diretrizes Orçamentárias – LDO, todas as receitas do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT passaram a integrar o Orçamento da Seguridade – antes apenas as receitas do PIS/PASEP eram lançadas.

Bibliografia: 

- ARAÚJO, Odília Sousa (2004). A reforma da previdência social brasileira no contexto das reformas do Estado: 1988 a 1998. Natal, EDUFRN- Editora da UFRN, 2004.

- GENTIL, Denise Lobato. A política Fiscal e a Falsa Crise da Seguridade Social Brasileira: Análise financeira do período 1990-2005. 2006, 243 f. Tese (doutorado em economia). Instituto de Economia – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2006. 

- LEI COMPLEMENTAR Nº 101, Lei de Responsabilidade Fiscal, 4 de maio de 
2000.

- MIRANDA, Andrey L. F. O déficit da Previdência Social: Análise comparativa entre as duas linhas metodológicas divergentes. 2012, 97f. Dissertação (mestrado em economia). Departamento de ciências econômicas – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2010.  Disponível em: <http://tcc.bu.ufsc.br/Economia292766>. Acesso em: 18 Out. 2012.

- GIAMBIAGI, Fábio. Reforma da Previdência: o encontro marcado. Rio de Janeiro, Ed. Elsevier. 2007

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